agosto 08, 2025

Sol q.b.

Lucy continua no céu. Em muitos céus. Desce todos os meios-dias, para dois dedos de conversa e um ovo estrelado. Uma gema muito saturna que a faz sorrir. E faz-me sorrir. Só com os olhos. É a única hora do dia sem este cansaço, esta moínha reincidente torta como as velhas de aldeia em manhã de missa, vingativa como a mulher não desejada. E dessas mulheres, que dizem ser os anjos de um deus desatento, não espero mais lições nem palmadas nas costas. Por muito doces. Nascer no Lower East Side não tem sabor a fruta. E na ausência de tela, pincela-se com todos os tons de cinzento. E mesmo assim há o sol e o rio. A brisa é grátis a caminho de Staten Island. Um olhar sobre Hoboken. O sim ou o não de quem dúvida todos os dias. A banda em momentânea alegoria filarmónica. Uma vénia à rainha de Inglaterra, entre gargalhadas, cornetins, pratos e bombo. Dias assim de repletos. E esse sol, irónico, antigo de guerras e batalhas, comensal harmónico sem cadeira marcada, esse sol hóspede desta cozinha imaculada, objector de consciências estéreis pela amizade perdida em templos gregos, esse sol encomendado pelo Edward e entregue a Hopper, para os poucos amigos de muito empenho mas pouco tempo.

Ao som de Lily and Madeleine "Blue Blades"

agosto 06, 2025

Continuação do capítulo seguinte

A madrugada repete-se em horas ébrias e cientes de um peso que a torna obesa perante o sol e o dia. Ao adivinhar o quotidiano, a madrugada suspende a rotatividade. Levita entre a neblina e os pescoços gelados pela água resfriada. A madrugada surpreende-se pelo matraquear contínuo do metal sobre os carris, pelas janelas orvalhadas deixando o rasto sem se mostrar. Quando se senta, olha a cor que ainda não desbotou no tecido gasto. Parece rodeada de fadiga. Solícito, sugiro-lhe um sono. Um de qualquer cor. Sem um agradecimento formal, adormece. Sorrio, agradecido. Continuemos.

Saio do compartimento, olho os dois lados do corredor e adivinho a carruagem-bar. Não conheço o significado de hesitação mas reconheço as caras, os sonoros e alarves vivas à liberdade, as gotas por beber misturadas com barba de dois dias e os casacos de linho. Foram antepassados. Merecem o respeito. Merecem por decreto, porque a mim, as leis... Olho o barman nos olhos e vejo-me distintamente. Não consigo decidir se é o meu reflexo ou se estou do outro lado do balcão. Não importa. Peço-me um copo, acrescento que basta meio e advirto o número de pedras de gelo. Parece-me importante esta contagem, talvez porque temos tempo. Importa-se o tempo connosco? Prefiro pensar que nem nos conhece. É o melhor benefício de dúvida e só por isso, ofereço-lho. Continuamos?

Ao som de Roy Budd "Get Carter Main Theme"