julho 29, 2025

A importância do último cigarro

Ao conseguir chegar algures, pelo caminho que tinha de ser, olha-se em volta e provávelmente não haverá muito que ver. Desenham-se os contornos de algo parecido com o que se procurava, oferecem-se alguns sorrisos, verdadeiros, relembram-se alguns amigos, esses espécimes em extinção que se guardam num cofre, e rebuscam-se os bolsos à procura de restos e pedacinhos de papel reescritos demasiadas vezes para serem relidos. Esses papéis onde os erros se repetem apenas por não se saber parar. E ao escolher caminhos sem mapas, andar por aí de desvio em desvio onde se busca a brecha ao cerco, haverão becos sem saída onde as janelas permanecem iluminadas o dia todo e os gritos se querem discretos e contidos.

Nesses cantos provavelmente haverá público. E provavelmente ignorante e exigente ao mesmo tempo. E nesse mesmo tempo, sem lugar para vagares nem pausas, repetem-se regressos ao palco, lê-se até à última linha a ficha técnica e repetem-se os agradecimentos que ficam sempre para próxima vez.

Ao voltar à rua olha-se em volta. As ruas estarão vazias por ser demasiado cedo ou demasiado tarde. Ou porque a verdade queima. Como um ácido vingativo corrói o que resta por dentro, sejam restos de razão ou apenas o fio condutor que se mantém de pé.

Contra o convencionado, regressa-se em pensamento ao palco e tenta-se uma dedicatória. Uma frase rebuscada que encerre num mesmo ramo de violetas, um desabafo, um perdão e uma carícia. As mãos vazias tornam-se doridas, gretadas pelo frio da caneta e agarra-se com vigor uma pétala onde se grava um intento que se adia.

De manhã, o verbo de olhar e ver os dias solarentos sem sol, os pingos de chuva sem poesia, a chávena de café sempre fria e as recordações vividas e apagadas por um arrastar dos pés até às margens para sentir os salpicos, do rio que insiste em não parar sequer para os bons dias. Imagina-se uma ponte atravessada a meio da manhã, aquela hora em que a neblina e o sol se confundem permitindo desvarios como iniciar viagens ou permanecer quieto, a contar os carneirinhos que o vento cria nas ondas. Ao desviar o caminho para uma pausa, fugaz que esse tempo de encontros marcados insiste em reprovar, é ainda o cheiro do pão acabado de sair do forno que o minuto alerta para ser hoje.

Por fim, nesse fim que tem quase sempre mais importância que um início, estará essa maldade perfeita, a fadiga egoísta de quem olha em volta e só existem espelhos. E por uma vez a verdade não terá adversário. Reflectirá a importância de um último... seja o que for.

Ao som de Night Tapes "Helix"

julho 18, 2025

A que hora começa o dia?

Serviços a um quarto alheio, vírgulas caindo da cama desfeita como se a noite fosse de estrelas decadentes, ou sonhos atados com cordel adocicado como se o açúcar fosse açaime e coleira. Na voz, sumida de tanto suor, o resto do dicionário da fadiga auto-inflingida, sílabas que se perdem quando os cortinados estão abertos aos olhares do prédio em frente. Os cigarros amarrotam-se por entre fumo teimoso e batom desfiado, os arranhões de uma coca-cola seca e pegajosa, o sofá gasto das tardes sem conta, as mesmas posições, as mesmas canções que arranham de tanto rodar. No tecto, as rachas de anos sem fio. Nas paredes, posters que se rompem, desafiando as tendências e discos riscados. No chão, as marcas dos que passaram e se vieram. Na mão, o traço tardio da mudança adiada. Sobra um casaco. O que rumina o depois, tornando morna o resto da tarde.

Ao som de Madrugada "A Deadend Mind"

julho 17, 2025

Só o azul se torna cor de laranja

Repetimos o Verão com a vontade das manhãs amarelas, dos pêssegos com o sumo a escorrer pelo peito, da areia quente e das árvores que só existem depois do almoço. Essas que espreitam ao longe. Não se conhece o seu tempo, nem se conseguem medir nem arrumar as dúvidas e as intenções. Existem algures, mas só de vez em quando. E é o bastante. Se fossem eternos e possuissem razão, perderiam a cor e o sabor. Se conhecessem o tempo e as estações do ano, ficariam poeirentos. Se nos fossem apresentados com cerimónia, provavelmente desdenhariam o nosso sorriso. Provocadores e ocasionalmente ignorantes, estes bocados de imagem e fruta fresca são sábios, quando se escondem. De nós. E por sabermos os seus segredos, quando os sabemos, perdemos a inocência e não os conseguimos saborear até ao fim.

Ao som de An April March "Summer's Gone"

julho 16, 2025

Antiguidades

Ao soar a hora exacta na forma de arredondar o silêncio, segredo onde a natura presenteia o desejo, esse sopro cálido, sustenido, veludo de carícias suspensas por um olhar à procura de anuência, algodão feito de seda onde o dedo toma o braço e todo um corpo, prova de xerez antigo, sol repousando à espera de uma lua suspeita de reunir paixões e quilates.

Ao som de The Bambi Molesters "Chaotica"

julho 15, 2025

Recomeçar sem início

A paz, tingida de vermelhos asiáticos como os contentores que deformam vértices e criam zonas de conforto, desenha os lugares onde a escuridão e as luzes nocturnas são ninho e ousadia. Nesse lugar, vendem-se os minutos mais demorados. Nesse lugar, as circunferências nunca se fecham.

Talvez por essa geometria egoísta, ou apenas providencial, tira-se das gavetas e dos armários profundos, o celulóide que define o romance e o drama. E ao ressuscitar as rodas dentadas, ilumina-se o sorriso da ocasião, esse esgar com que se compram as emoções e se oferecem os pensamentos.

Ao som de Betray My Secrets "Desert Dance"