A madrugada repete-se em horas ébrias e cientes de um peso que a torna obesa perante o sol e o dia. Ao adivinhar o quotidiano, a madrugada suspende a rotatividade. Levita entre a neblina e os pescoços gelados pela água resfriada. A madrugada surpreende-se pelo matraquear contínuo do metal sobre os carris, pelas janelas orvalhadas deixando o rasto sem se mostrar. Quando se senta, olha a cor que ainda não desbotou no tecido gasto. Parece rodeada de fadiga. Solícito, sugiro-lhe um sono. Um de qualquer cor. Sem um agradecimento formal, adormece. Sorrio, agradecido. Continuemos.
Saio do compartimento, olho os dois lados do corredor e adivinho a carruagem-bar. Não conheço o significado de hesitação mas reconheço as caras, os sonoros e alarves vivas à liberdade, as gotas por beber misturadas com barba de dois dias e os casacos de linho. Foram antepassados. Merecem o respeito. Merecem por decreto, porque a mim, as leis... Olho o barman nos olhos e vejo-me distintamente. Não consigo decidir se é o meu reflexo ou se estou do outro lado do balcão. Não importa. Peço-me um copo, acrescento que basta meio e advirto o número de pedras de gelo. Parece-me importante esta contagem, talvez porque temos tempo. Importa-se o tempo connosco? Prefiro pensar que nem nos conhece. É o melhor benefício de dúvida e só por isso, ofereço-lho. Continuamos?
Ao som de Roy Budd "Get Carter Main Theme"
agosto 06, 2025
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Sim, continuemos — porque o texto abre espaço para que o tempo se dilua entre metáforas e reflexos. A viagem só faz sentido enquanto houver palavra.
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