outubro 09, 2025

Sur real

Lanternas. Vermelhas. Tremem. Pulsam. E respiram. Respiram como corações? Pulsam e tremem. Como corações

Som de madeira rangendo. Rangendo. Passos. Os meus? Não serão os meus passos. Não.

Bares abertos. Fechados ao óbvio.

Música. Shamisen distante.

Cheiro. Bebida, incenso e madeira antiga. Charuto? E chuva? Talvez.

Portas rangendo. Abrindo e fechando.

Salões de luz filtrada. Papel de arroz. E olhares que não me encontram. E se encontram? Risos que se desfazem antes de serem ditos.

Neon. Vermelho. Azul. Branco. Lampejos. E Pulsando fora do peito.

Tempo curvando e desaparecendo. Reaparece dobrado. E quebrado, escapa. Escapa-nos

Na esquina, outro tempo. E a seguir, outra esquina.

Passo. Eco. Eco. Eco de passos. Meus? Talvez meus se fragmentos.

Fragmentos como memórias que não são.

Respiração. Sinto. Encosto. E sinto.

A música, os aromas e as sombras. Os brilhos. Tudo mistura. Tudo se mistura.

Bares e salões de portas fechadas. E abertas à luz que a sombra consome.

Lembranças que não vivi. Desejos que não confesso.

Respiração. O pulso tremendo em lampejos que pulam. Tremendo.

Passo. Passo. Passo. Sigo. Perco. Encontro. E reencontro.

Rua que respira. Rua que guarda. Rua que observa e me engole. Que chama e persegue.

Cada parede é um diário silencioso. Cada sombra um eco. Cada cheiro uma memória.

Passos que se multiplicam e que se dobram. Cada instante duplicado. Duplicado.

Shhh… a música está distante. O shamisen que atravessa. E eu que atravesso, sigo e perco-me.

Luzes, sombras, cheiros e aromas. Sussurros, risos, lamentos e desejos. Memórias. Passos. Neon. Pulso e respiração.

Rua. Rua. Rua. Rua.

Eu? Sigo e existo. Eu estou aqui. E sou aqui. Apenas agora. Apenas. Apenas. Apenas.

Lanternas que tremem. Pulsam como respiro. Como corações ou memórias. Como presentes que não são meus. Mas são meus. Mas são meus.

A rua respira. Observa-me. Guarda-me.

Eu sigo. Eu sigo. Eu sigo.

agosto 08, 2025

Sol q.b.

Lucy continua no céu. Em muitos céus. Desce todos os meios-dias, para dois dedos de conversa e um ovo estrelado. Uma gema muito saturna que a faz sorrir. E faz-me sorrir. Só com os olhos. É a única hora do dia sem este cansaço, esta moínha reincidente torta como as velhas de aldeia em manhã de missa, vingativa como a mulher não desejada. E dessas mulheres, que dizem ser os anjos de um deus desatento, não espero mais lições nem palmadas nas costas. Por muito doces. Nascer no Lower East Side não tem sabor a fruta. E na ausência de tela, pincela-se com todos os tons de cinzento. E mesmo assim há o sol e o rio. A brisa é grátis a caminho de Staten Island. Um olhar sobre Hoboken. O sim ou o não de quem dúvida todos os dias. A banda em momentânea alegoria filarmónica. Uma vénia à rainha de Inglaterra, entre gargalhadas, cornetins, pratos e bombo. Dias assim de repletos. E esse sol, irónico, antigo de guerras e batalhas, comensal harmónico sem cadeira marcada, esse sol hóspede desta cozinha imaculada, objector de consciências estéreis pela amizade perdida em templos gregos, esse sol encomendado pelo Edward e entregue a Hopper, para os poucos amigos de muito empenho mas pouco tempo.

Ao som de Lily and Madeleine "Blue Blades"

agosto 06, 2025

Continuação do capítulo seguinte

A madrugada repete-se em horas ébrias e cientes de um peso que a torna obesa perante o sol e o dia. Ao adivinhar o quotidiano, a madrugada suspende a rotatividade. Levita entre a neblina e os pescoços gelados pela água resfriada. A madrugada surpreende-se pelo matraquear contínuo do metal sobre os carris, pelas janelas orvalhadas deixando o rasto sem se mostrar. Quando se senta, olha a cor que ainda não desbotou no tecido gasto. Parece rodeada de fadiga. Solícito, sugiro-lhe um sono. Um de qualquer cor. Sem um agradecimento formal, adormece. Sorrio, agradecido. Continuemos.

Saio do compartimento, olho os dois lados do corredor e adivinho a carruagem-bar. Não conheço o significado de hesitação mas reconheço as caras, os sonoros e alarves vivas à liberdade, as gotas por beber misturadas com barba de dois dias e os casacos de linho. Foram antepassados. Merecem o respeito. Merecem por decreto, porque a mim, as leis... Olho o barman nos olhos e vejo-me distintamente. Não consigo decidir se é o meu reflexo ou se estou do outro lado do balcão. Não importa. Peço-me um copo, acrescento que basta meio e advirto o número de pedras de gelo. Parece-me importante esta contagem, talvez porque temos tempo. Importa-se o tempo connosco? Prefiro pensar que nem nos conhece. É o melhor benefício de dúvida e só por isso, ofereço-lho. Continuamos?

Ao som de Roy Budd "Get Carter Main Theme"

julho 29, 2025

A importância do último cigarro

Ao conseguir chegar algures, pelo caminho que tinha de ser, olha-se em volta e provávelmente não haverá muito que ver. Desenham-se os contornos de algo parecido com o que se procurava, oferecem-se alguns sorrisos, verdadeiros, relembram-se alguns amigos, esses espécimes em extinção que se guardam num cofre, e rebuscam-se os bolsos à procura de restos e pedacinhos de papel reescritos demasiadas vezes para serem relidos. Esses papéis onde os erros se repetem apenas por não se saber parar. E ao escolher caminhos sem mapas, andar por aí de desvio em desvio onde se busca a brecha ao cerco, haverão becos sem saída onde as janelas permanecem iluminadas o dia todo e os gritos se querem discretos e contidos.

Nesses cantos provavelmente haverá público. E provavelmente ignorante e exigente ao mesmo tempo. E nesse mesmo tempo, sem lugar para vagares nem pausas, repetem-se regressos ao palco, lê-se até à última linha a ficha técnica e repetem-se os agradecimentos que ficam sempre para próxima vez.

Ao voltar à rua olha-se em volta. As ruas estarão vazias por ser demasiado cedo ou demasiado tarde. Ou porque a verdade queima. Como um ácido vingativo corrói o que resta por dentro, sejam restos de razão ou apenas o fio condutor que se mantém de pé.

Contra o convencionado, regressa-se em pensamento ao palco e tenta-se uma dedicatória. Uma frase rebuscada que encerre num mesmo ramo de violetas, um desabafo, um perdão e uma carícia. As mãos vazias tornam-se doridas, gretadas pelo frio da caneta e agarra-se com vigor uma pétala onde se grava um intento que se adia.

De manhã, o verbo de olhar e ver os dias solarentos sem sol, os pingos de chuva sem poesia, a chávena de café sempre fria e as recordações vividas e apagadas por um arrastar dos pés até às margens para sentir os salpicos, do rio que insiste em não parar sequer para os bons dias. Imagina-se uma ponte atravessada a meio da manhã, aquela hora em que a neblina e o sol se confundem permitindo desvarios como iniciar viagens ou permanecer quieto, a contar os carneirinhos que o vento cria nas ondas. Ao desviar o caminho para uma pausa, fugaz que esse tempo de encontros marcados insiste em reprovar, é ainda o cheiro do pão acabado de sair do forno que o minuto alerta para ser hoje.

Por fim, nesse fim que tem quase sempre mais importância que um início, estará essa maldade perfeita, a fadiga egoísta de quem olha em volta e só existem espelhos. E por uma vez a verdade não terá adversário. Reflectirá a importância de um último... seja o que for.

Ao som de Night Tapes "Helix"

julho 18, 2025

A que hora começa o dia?

Serviços a um quarto alheio, vírgulas caindo da cama desfeita como se a noite fosse de estrelas decadentes, ou sonhos atados com cordel adocicado como se o açúcar fosse açaime e coleira. Na voz, sumida de tanto suor, o resto do dicionário da fadiga auto-inflingida, sílabas que se perdem quando os cortinados estão abertos aos olhares do prédio em frente. Os cigarros amarrotam-se por entre fumo teimoso e batom desfiado, os arranhões de uma coca-cola seca e pegajosa, o sofá gasto das tardes sem conta, as mesmas posições, as mesmas canções que arranham de tanto rodar. No tecto, as rachas de anos sem fio. Nas paredes, posters que se rompem, desafiando as tendências e discos riscados. No chão, as marcas dos que passaram e se vieram. Na mão, o traço tardio da mudança adiada. Sobra um casaco. O que rumina o depois, tornando morna o resto da tarde.

Ao som de Madrugada "A Deadend Mind"

julho 17, 2025

Só o azul se torna cor de laranja

Repetimos o Verão com a vontade das manhãs amarelas, dos pêssegos com o sumo a escorrer pelo peito, da areia quente e das árvores que só existem depois do almoço. Essas que espreitam ao longe. Não se conhece o seu tempo, nem se conseguem medir nem arrumar as dúvidas e as intenções. Existem algures, mas só de vez em quando. E é o bastante. Se fossem eternos e possuissem razão, perderiam a cor e o sabor. Se conhecessem o tempo e as estações do ano, ficariam poeirentos. Se nos fossem apresentados com cerimónia, provavelmente desdenhariam o nosso sorriso. Provocadores e ocasionalmente ignorantes, estes bocados de imagem e fruta fresca são sábios, quando se escondem. De nós. E por sabermos os seus segredos, quando os sabemos, perdemos a inocência e não os conseguimos saborear até ao fim.

Ao som de An April March "Summer's Gone"

julho 16, 2025

Antiguidades

Ao soar a hora exacta na forma de arredondar o silêncio, segredo onde a natura presenteia o desejo, esse sopro cálido, sustenido, veludo de carícias suspensas por um olhar à procura de anuência, algodão feito de seda onde o dedo toma o braço e todo um corpo, prova de xerez antigo, sol repousando à espera de uma lua suspeita de reunir paixões e quilates.

Ao som de The Bambi Molesters "Chaotica"